Materialismo e Empiro-Criticismo
Notas e Críticas Sobre uma Filosofia Reacionária

V. I. Lênin

Capítulo II - A Teoria do Conhecimento do Empiro-Criticismo e do Materialismo Dialético
(continuação)


12. O Critério da Prática na Teoria do Conhecimento


Vimos Marx, em 1845, e Engels, em 1888 e 1891, basear a teoria materialista do conhecimento no critério da prática. Colocar fora da prática a questão da "correspondência da verdade objetiva em relação ao pensamento humano" é entregar-se à escolástica, diz Marx em sua segunda tese sobre Feuerbach. A prática é a melhor refutação do agnosticismo de Kant e de Hume, como, aliás, de todos os outros subterfúgios (Schrullen) filosóficos, repete Engels.

"O resultado da nossa ação demonstra a correspondência (Übcreinstimmung) entre nossas percepções e a natureza objetiva das coisas percebidas", replica Engels aos agnósticos.

Comparai a essas ideias a dissertação de Mach sobre o critério da prática:

"Acostumou-se, no pensamento habitual e na linguagem comum, a opor o aparente à realidade. Elevando no ar, diante de nós, um lápis, vemo-lo retilíneo. Colocando-o obliquamente na água, vemo-lo quebrado, embora, na realidade, esteja direito. Diz-se, nesse último caso, que o lápis parece quebrado, mas direito na realidade. E sobre que nos baseamos para qualificar um fato de real e rebaixar outro ao nível da aparência?... Quando cometemos o erro natural de esperar, em casos ordinários, fenômenos ordinários, nossas esperanças são, a bem| dizer, ludibriadas. Mas os fatos não o são, em absoluto. Falar em aparência em semelhante caso é permitido do ponto de vista prático, mas absolutamente não o é do ponto de vista científico. Do mesmo modo, a questão tantas vezes levantada — o universo uma existência real ou não passa de nossa sonho? — não qualquer sentido do ponto de vista científico. O sonho mais absurdo é também um fato, pelo mesmo motivo que qualquer outro" (Análise das sensações, pp. 18-19).

É certo que um sonho absurdo é um fato, tanto quanto um filosofo absurdo. Não se pode duvidar de tal coisa depois de se ter tomado conhecimento da filosofia de Ernst Mach. Esse autor confunde, como o último dos sofistas, o estudo histórico-científico e psicológico dos erros humanos, dos sonhos "absurdos" de toda especie tidos pela humanidade, tais como a crença nos fantasmas, nos lobisomens, etc. com a discriminação gnoseológica do verdadeiro e do "absurdo". É como se um economista cuidasse de sustentar que a teoria de Senior, segundo a qual todo o lucro do capitalista é o produto da "última hora" do trabalho do operário, e a doutrina de Marx são, ambas, pelo mesmo motivo, fatos não tendo, portanto, nenhum valor científico saber qual dessas teorias exprime a verdade objetiva e qual delas traduz os preconceitos da burguesia e a corrupção de seus professores. O curtidor J. Dietzgen via, na teoria do conhecimento científico, isto é, materialista, uma "arma universal contra a fé religiosa" (Kleinere philosophische Schriften, p. 66); mas, para o professor chamado Ernst Mach, a distinção entre a teoria materialista e a do idealismo subjetivo "não tem qualquer sentido do ponto de vista científico". A ciência não toma partido na batalha travada pelo materialismo contra o idealismo e a religião — eis a ideia mais querida de Mach e de todos os professores universitários burgueses contemporâneos, esses "lacaios diplomados, cujo idealismo animalizou o povo", segundo a expressão tão justa do próprio J. Dietzgen (p. 53, loc. cit.).

Quando nos referimos precisamente a esse idealismo laborioso dos professores, E. Mach descobre mais além da ciência, mais além da teoria do conhecimento, o critério da prática, que distingue, para todo o mundo, a ilusão da realidade. A prática humana demonstra a exatidão da teoria materialista do conhecimento, diziam Marx e Engels, qualificando de "escolástica" e de "subterfúgios filosóficos" as tentativas feitas para resolver a questão gnoseológica fundamental, sem recorrer à prática. Para Mach, ao contrário, a prática é uma coisa e a teoria do conhecimento é outra; pode-se considerá-las lado a lado, sem que uma condicione a outra. Em sua última obra, Conhecimento e erro, Mach escreve:

"Um conhecimento é sempre uma coisa física, biologicamente útil" (p. 115 da 2.a edição alemã)... "Somente o êxito distingue a verdade do erro" (p. 116)... "A concepção (Begriff) é uma hipótese física útil para o trabalho" (p. 143).

Nossos discípulos russos de Mach, que pretendem ser marxistas, veem nessas frases de Mach, com notável ingenuidade a prova de que esse último se aproxima do marxismo. Mach aproxima-se aqui do marxismo como Bismarck se aproximava do movimento operário ou o bispo Eulogios do democratismo. Tais proposições confinam, em Mach, com sua teoria idealista do conhecimento, mas sem influir na escolha de uma orientação gnoseológica determinada. O conhecimento não pode ser biologicamente útil, útil ao homem na prática, na conservação da vida, na conservação da especie, se não reflete a verdade independente do homem. Para o materialista, o "exito" da prática humana demonstra a concordância de nossas ideias com a natureza objetiva das coisas percebidas. Para o solipsista, o "exito é tudo de que tenho necessidade na prática, que pode ser considerada independentemente da teoria do conhecimento. O critério da prática sendo colocado na base da teoria do conhecimento, chegamos inevitavelmente ao materialismo, diz o marxista. A prática pode ser materialista, diz Mach, mas, quanto à sua teoria, trata-se de coisa muito diferente.

"Praticamente — escreve na Análise das sensações —, é-nos inteiramente impossível passar da noção do eu em ação para a do corpo, no momento em que estendemos a mão para apreender um objeto. Ficamos fisiologicamente egoístas e materialistas com tanto mais constância quanto mais vejamos o sol se levantar. Mas não nos devemos, absolutamente, ater a essa concepção na teoria" (p. 291).

A expressão egoismo é aqui inteiramente supérflua, uma vez que o egoismo constitui uma categoria completamente estranha à gnoseologia. É também sem o menor motivo que Mach fala aqui do movimento aparente do sol em torno da terra, sendo que a prática, que nos serve de critério na teoria do conhecimento, deve abranger a das observações astronômicas descobertas, etc. Não resta, portanto, desse pensamento de Mach mais do que a preciosa confissão de que os homens são inteiramente, exclusivamente guiados, em sua prática, pela teoria materialista do conhecimento. E a tentativa de contorná-la "teoricamente" não faz senão exprimir a pedante escolástica e o idealismo afanoso de Mach.

O quanto são velhos tais esforços para afastar a prática, como não dependendo do estudo gnoseológico, afim de dar lugar ao agnosticismo e ao idealismo, mostra-lo-á o exemplo seguinte, tomado à filosofia clássica alemã. G. E. Schulze (Schulze–Änesidemus, na história da filosofia) encontra-se no caminho que vai de Kant a Fichte. Defende abertamente a corrente cética em filosofia e declara-se discípulo de Hume (e, entre os antigos, de Pirro e de Sextus). Nega categoricamente toda coisa em si e a possibilidade do conhecimento objetivo, exigindo, não menos categoricamente, que não ultrapassemos a "experiência", as sensações, o que não o impede de prever as objeções possíveis:

"Como, na vida cotidiana, o cético reconhece a realidade das coisas objetivas, age em consequência e admite o critério da verdade, sua própria conduta constitui, nesse caso, a melhor e a evidente refutação do seu ceticismo"(1).

"Tais argumentos — responde Schulze indignado— não são bons sendo para a população (Pöbel) (p. 254)... Porque o meu ceticismo não se estende à prática; fica nos limites da filosofia" (p. 255).

O idealista subjetivo Fichte também espera encontrar, no domínio da filosofia idealista, um lugar para o

"realismo que se impõe (sich aufdrinngf) a todos nós, e mesmo ao idealista mais resoluto, quando recorremos à ação; para o realismo que admite a existência dos objetos fora e independentemente de nós". (Obras, t. p. 445).

O positivismo mais moderno de Mach nada se distanciou de Schulze e de Fichte. Observemos, a título de curiosidade que, para Bogdanov, nada existe, nesse particular, fora de Plerrânov: o gato é para o rato o animal mais poderoso. Bazarov ridiculariza a "filosofia salto vitale de Plerrânov" (Esboços p. 69), que realmente escreveu — frase desastrada — que a "fé" na existência do mundo exterior é, em filosofia, um inevitável salto vitale (Notas sobre L. Feuerbach, p. 111). A expressão "fé", embora colocada entre aspas e repetida segundo Hume, revela certamente, em Plerrânov, uma confusão de termos. Mas que vem fazer aqui Plerrânov? Porque Bazarov não discute outro materialista, lançamos mão de Feuerbach? Seria unicamente falta de conhecê-lo? Ignorância não é argumento, Nas questões fundamentais da teoria do conhecimento, Feuerbach também dá, como Marx e Engels, um "salto" para a prática, salto inadmissível segundo o ponto de vista de Schulze, Fichte e Mach. Criticando o idealismo, Feuerbach definiu-o com auxilio de uma excelente citação de Fichte, que se aplica admiravelmente a toda a doutrina de Mach.

"Tu crês, escrevia Fichte, que as coisas são reais, que existem independentemente de ti, pela única razão que tu as vês, ouves e tocas. Mas a visão, o tacto e a audição não passam de sensações... Não percebes as coisas, percebes apenas sensações" (Feuerbach, Obras, t. X, p. 185).

E Feuerbach replica:

"O ser humano não é um eu abstrato, é um homem ou uma mulher, e a questão de saber se o mundo é minha sensação reduz-se a esta outra: um outro homem não é senão uma sensação ou as nossas relações práticas demonstram o contrário? O erro capital do idealismo consiste precisamente em formular e resolver os problemas da objetividade, da realidade ou da irrealidade do mundo somente do ponto de vista teórico" (página na 189, loc. cit.).

Feuerbach baseia a teoria do conhecimento no conjunto da prática humana. Certamente, diz ele, os idealistas reconhecem, na prática, a realidade do nosso eu e a do vosso, a do eu de outrem.

Para o idealista, "esse ponto de vista vale apenas para a vida e não para a especulação. Mas a especulação que entra em contradição com a vida e faz do ponto de vista da morte, da alma separada do corpo, o da verdade, é uma especulação morta, falsa" (P- 192).

Respiramos antes de sentir e não podemos existir sem ar, sem comer e sem beber.

"Desse modo, trata-se de alimentação e de bebida no problema da idealidade ou da realidade do universo! exclama indignado o idealista. Que baixeza! Que ofensa ao bom costume de deblaterar, do alto das cátedras de filosofia e teologia, contra o materialismo nas ciências, para, em seguida, praticar na mesa de refeições o materialismo mais primitivo!" (p. 155).

E Feuerbach afirma que situar, no mesmo plano, a sensação subjetiva e o mundo objetivo

"é colocar o sinal de igualdade entre a fecundação e o parto" (p. 198).

A observação não é das mais polidas, mas atinge certeiramente os filósofos que ensinam que a realidade exterior não é outra coisa senão a representação dos nossos sentidos.

A concepção da prática, da vida, deve ser a concepção fundamental da teoria do conhecimento. Afastando do seu caminho as elucubrações intermináveis da escolástica professoral, conduz infalivelmente, em linha reta, ao materialismo. É certo que não se deve esquecer que o critério da prática nunca pode, no fundo, confirmar ou refutar completamente uma ideia humana; qualquer que seja. Esse critério é, igualmente, bastante para não permitir que os conhecimentos humanos se tornem "absolutos"; é, entretanto, suficientemente determinado para permitir uma luta implacável contra todas as variedades do idealismo e do agnosticismo. Se o que nossa prática confirma é a verdade objetiva única, final, conclui-se que o único rumo que conduz a essa verdade é o da ciência baseada na concepção materialista. Bogdanov concorda, por exemplo, em reconhecer, na teoria da circulação do dinheiro de Marx, uma verdade objetiva, mas apenas "para nossa época", e qualifica de "dogmatismo" o atribuir-se a essa teoria uma veracidade "objetiva supra histórica (Empiromonismo, t. III, p. VII). Mais uma confusão. Nenhuma circunstancia posterior poderá modificar a concordância dessa teoria com a prática, pela mesma razão que faz desta verdade — "Napoleão morreu a 5 de maio de 1821" — uma verdade eterna. Mas como o critério da prática — por outras palavras, o desenvolvimento de todos os países capitalistas durante as ultimas décadas — demonstra a verdade objetiva de toda a teoria econômica e social de Marx em geral, e não dessa ou daquela de suas partes, dessa ou daquela de suas fórmulas, etc., é claro que falar, aqui, do "dogmatismo" dos marxistas é fazer concessão imperdoável à economia burguesa. A única conclusão que se pode tirar da opinião, partilhada pelos marxistas, de que a teoria de Marx é uma verdade objetiva é a seguinte: baseando-nos na teoria de Marx, cada vez mais nos aproximamos da verdade objetiva (sem, entretanto, nunca a esgotar); qualquer outro caminho que sigamos, nos conduzirá, ao contrário, tão somente ao erro e à confusão.


Notas de rodapé:

(1) G. E. Schulze, "Anesidemus oder über die Fundamente der von dem Prof. Reinhold in Jena gelieferten Elementarphilosophie, 1792, pág. 253.— N. L. (retornar ao texto)

Inclusão 27/07/2014