Materialismo e Empiro-Criticismo
Notas e Críticas Sobre uma Filosofia Reacionária

V. I. Lênin

Capítulo IV - Os Filósofos Idealistas, Irmãos de Armas e Sucessores do Empiro-Criticismo


23. O "Empiro-Monismo" de A. Bogdanov


"Pessoalmente — escreve Bogdanov falando de si mesmo — , não conheço, até o memento, em literatura, senão apenas um empiro-monista, e esse é um certo A. Bogdanov; mas, em compensação, eu o conheço muito bem e posso garantir que suas opiniões satisfazem inteiramente a fórmula sacramental do primado da natureza sobre o espírito. Ele vê, em tudo quanto existe, uma cadeia ininterrupta de desenvolvimentos cujos anéis inferiores se perdem no caos dos elementos, enquanto os anéis superiores, que conhecemos, representam a experiência dos homens, a experiência psíquica e, mais alto ainda, a experiência física, que, com a consciência que engendra, corresponde ao que se chama comumente de espírito" (Empiromonismo, III, p. XII).

Bogdanov ridiculariza aqui, chamando de fórmula "sacramental", a proposição de Engels, que já conhecemos e ele contorna diplomaticamente! Mas ele não está em desacordo com Engels, não, não...

Considerai, mais de perto, o resumo, dado pelo próprio Bogdanov, de seu famoso "empiro-monismo" e de sua "substituição". O mundo físico é chamado aqui de experiência humana; a experiência física é colocá-la "mais alto", na cadeia do desenvolvimento, do que a experiência psíquica. Gritante contrassenso inerente a toda filosofia idealista. É simplesmente ridículo ver Bogdanov esforçar-se por ligar ao materialismo um "sistema" desta especie: a natureza é, para mim, observai, o elemento primordial, e o espírito o elemento secundário. Aplicada desse modo a definição de Engels, também Hegel é materialista, uma que, para ele, a experiência psíquica (chamada de ideia absoluta) vem igualmente em primeiro lugar, seguida do mundo físico da natureza, situada "mais alto", e seguida finalmente do conhecimento humano, que concebe, através da natureza, a idias absoluta. Nenhum idealista negará, nesse sentido, o primado da natureza, uma vez que não se trata na realidade de um primado e a natureza não é considerada aqui como um dado imediato, como o ponto de partida da gnoseologia. Na verdade, uma longa transição nos conduz aqui até a natureza, através das abstrações do psíquico. Que essas abstrações sejam chamadas de ideia absoluta, eu universal, vontade universal, etc., etc., pouco importa. Assim se distinguem as variedades de idealismo e o seu numero é infinito. A essência do idealismo consiste em tomar o psíquico como ponto de partida: a natureza dela se deduz; e a comum consciência humana não é deduzida senão após a natureza. Esse "psíquico" primordial é sempre uma abstração morta dissimulando uma teologia dulcificada. Cada um sabe, por exemplo, em que a ideia humana — mas a ideia sem o homem ou anterior ao homem, a ideia no abstrato, a ideia absoluta — é uma invenção teológica do idealista Hegel. Cada um sabe o quanto a sensação humana — mas a sensação sem o homem ou anterior ao homem — é um absurdo, uma abstração morta, um subterfúgio idealista. E é precisamente a um subterfúgio idealista que recorre Bogdanov quando estabelece a escala seguinte:

  1. o caos dos "elementos" (já sabemos que essa palavra "elemento" não contem nenhuma outra noção a não ser a de sensações);
  2. a experiência psíquica dos homens;
  3. a experiência física dos homens;
  4. "a consciência que ela engendra".

Não há sensações (humanas) sem o homem. O primeiro desses estágios é, portanto, uma abstração. Na verdade, não se trata aqui das sensações humanas costumeiras e familiares a todos, mas de não se sabe que sensações imaginadas, que não são de ninguém, que são sensações em geral, sensações divinas, do mesmo modo que a comum ideia humana se diviniza em Hegel logo que se destaca do homem e do cérebro humano.

Esse primeiro estagio não pode, por conseguinte, ser levado em consideração.

O segundo também não o pode, porque nenhum homem e nem as ciências naturais não conhecem o psíquico anterior ao físico (o segundo estagio precede, em Bogdanov, o terceiro). O mundo físico existiu antes que o mundo psíquico tivesse podido aparecer como o produto superior das formas superiores da matéria orgânica. O segundo estagio de Bogdanov também é, portanto, uma abstração morta, pensamento sem cérebro, razão humana destacada do homem.

Depois de termos eliminado esses dois primeiros estágios, e somente depois, é que foi possível ter do mundo uma visão verdadeiramente correspondente às ciências naturais e ao materialismo. Concretizemos:

  1. o mundo físico existe independentemente da consciência do homem e já existia bem antes do homem, bem antes de toda "experiência humana";
  2. o psíquico, a consciência, etc., é o produto superior da matéria (isto é, do físico), uma função dessa parcela particularmente complexa da matéria que se chama cérebro humano.

"O domínio da substituição — escreve Bogdanov — coincide com o dos fenômenos físicos; nos fenômenos psíquicos, nada há a substituir, uma vez que são complexos imediatos" (p. XXXIX).

Isso é bem o idealismo, uma vez que o psíquico, isto é, a consciência, a ideia, a sensação, é considerado como o imediato, enquanto o físico é deduzido dele, é por ele substituído. O mundo é o não-eu criado pelo nosso eu, dizia Fichte. O mundo é a ideia absoluta, dizia Hegel. O mundo é vontade, dizia Schopenhauer. O mundo é concepção e representação mental, dizia o imanente Rehmke. A existência é a consciência, diz o imanente Schuppe. O físico é o substituto do psíquico, diz Bogdanov. É preciso ser cego para não ver o mesmo fundo idealista sob todos esses enfeites verbais.

"Perguntamos — escreve Bogdanov no primeiro tomo do Empiromonismo, (pp. 128-129) — que é um ser vivo: o homem, por exemplo"

E Bogdanov responde:

"O homem é, em primeiro lugar ("em primeiro lugar", observai!), um complexo determinado de sensações imediatas. Torna-se, mais tarde no curso do desenvolvimento da experiência, para si mesmo e para os outros, um corpo físico como os outros corpos físicos".

"Complexo" de absurdos, de ponta a ponta, e que apenas serve para dele se deduzir a imortalidade da alma ou ideia de Deus, etc. O homem é, em primeiro lugar, um complexo de sensações imediatas e, depois, no desenvolvimento ulterior, um corpo físico! Por conseguinte, existem "sensações imediatas" sem corpo físico, anteriores a todo corpo físico. Lamentemos que essa magnifica filosofia ainda não tenha penetrado em nossos seminários: seus méritos seriam, neles, bem apreciados.

"Reconhecemos que a própria natureza física é um derivado dos complexos imediatos (aos quais também pertencem as coordenações psíquicas), que ela é uma imagem desses complexos em outros complexos análogos, mas de um tipo mais complicado (na experiência socialmente organizada dos seres vivos)" (p. 146).

A filosofia que ensina que a própria natureza física é um derivado, é uma filosofia puramente clerical. Seu caráter em nada se modificou com o zelo de Bogdanov em repudiar toda religião. Dühring também era ateu e chegou mesmo a propor que se proibisse a religião em seu regime "socialitário". Engels tinha, pois, razão em dizer que o "sistema" de Dühring não se completava sem religião. O mesmo se verifica com Bogdanov, com a diferença principal de que o trecho citado não é, para ele, uma casual inconsequência, mas exibe o fundo do seu Empiromonismo e de toda sua "substituição". Se a natureza é um derivado, conclui-se que ela não se pode derivar senão de uma fonte maior, mais rica, mais ampla, mais' poderosa do que ela, una fonte já existente, uma vez que, para "criar" a natureza, precisa existir independentemente dela. Alguma coisa, por conseguinte, existe fora da natureza e, além disso, cria a natureza. Para bem dizer, essa alguma coisa chama-se Deus Os filósofos idealistas sempre se esforçaram por modificar esse termo, por torná-lo mais abstrato, mais nebuloso, e igualmente (para maior verossimilhança) por aproximá-lo do "psíquico", "complexo imediato", dado imediato que não carece de nenhuma prova. Ideia absoluta, espírito universal, vontade universal, "substituição universal" do físico pelo psíquico constituem outras tantas fórmulas diferentes exprimindo a mesma ideia. Todo homem conhece — e as ciências naturais estudam — a ideia, o espírito, a vontade, o psíquico, como função do cérebro humano trabalhando normalmente; destacar essa função da substância organizada de maneira determinada, fazer dela uma função universal, uma abstração geral, "substituir" essa abstração por toda a natureza física tal é a quimera do idealismo filosófico, constituindo, igualmente, um desafio às ciências naturais.

O materialismo diz que a "experiência socialmente organizada dos seres vivos" é um derivado da natureza física, o resultado de uma longa evolução da natureza, iniciada numa época em que não havia e nem podia haver nem sociedade, nem organização, nem experiência, nem seres vivos. O idealismo diz que a natureza física é um derivado dessa experiência dos seres vivos, e, dizendo-o, eleva a natureza a Divindade (ou a submete a essa última). Sem dúvida, Deus é o derivado da experiência socialmente organizada dos seres vivos. Percorre-se em todos os sentidos a filosofia de Bogdanov e só se encontra confusão reacionária.

Parece a Bogdanov que falar da organização social da experiência é manifestar "socialismo gnoseológico" (t. III, página XXXIV). Tolice! Raciocinando desse modo, os jesuítas seriam adeptos fervorosos do "socialismo gnoseológico", uma vez que o ponto de partida de sua teoria do conhecimento é a Divindade tomada como "experiência socialmente organizada". O catolicismo é, sem dúvida, uma experiência socialmente organizada, mas, em vez de manifestar a verdade objetiva (negada por Bogdanov e apresentada pela ciência), manifesta a exploração da ignorância popular por certas classes sociais.

Mas para que necessitamos dos jesuítas? O "socialismo gnoseológico" de Bogdanov está inteiramente nos imanentes tão caros a Mach. Leclair considera a natureza como a consciência da especie humana (Der Realismus, etc., p. 55) e não do individuo. Desse socialismo gnoseológico à Fichte os filósofos burgueses vos servirão o quanto quiserdes. O próprio Schuppe acentua o fator geral, genérico, da consciência (das generische, aas gattungsmässige Moment des Bewusstseins, pp. 379 e 38, na V. f. w. Ph., t. XVII). Supor que o idealismo filosófico desaparece quando se substitui a consciência individual pela da humanidade ou a experiência de um só homem experiência socialmente organizada, é como se se imaginasse que o capitalismo vem a desaparecer quando uma sociedade por ações substitui um capitalista.

Nossos discípulos russos de Mach, Iuchkévitch e Valentinov, repetiram depois do materialista Rarmétov (não sem injuriar grosseiramente esse último), que Bogdanov é um idealista. Mas não souberam refletir sobre a procedência desse idealismo. A acreditar-se neles, Bogdanov seria um caso particular, individual, fortuito. É inexato. Bogdanov pode supor ter imaginado um sistema "original", mas basta compará-lo com os mencionados discípulos de Mach para se ter a convicção da falsidade dessa suposição. A diferença é muito menos acentuada entre Bogdanov e Cornelius do que entre Cornelius e Carus. A diferença entre Bogdanov e Carus é muito menor (quanto ao sistema filosófico, é claro, e não quanto ao grau de consciência das conclusões reacionárias) do que a existência entre Carus e Ziehen, etc. Bogdanov não é senão uma das manifestações da "experiência socialmente organizada" a testemunhar a evolução da doutrina de Mach para o idealismo. Bogdanov (trata-se aqui, acentuemos, apenas do filósofo) não teria podido vir a este pobre mundo se a doutrina do seu mestre Mach não contivesse "elementos"... do berkeleyismo. E não posso conceber, para Bogdanov, um "suplicio mais terrível" do que uma tradução do seu Empiromonismo para o alemão submetida à critica de Leclair e de Schubert-Soldern, de Cornelius e de Kleinpeter, de Carus e de Pillon (esse último é um colaborador e discípulo francês de Renouvier). Esses declarados companheiros de luta de Mach, que são, em certa medida, seus discípulos diretos, diriam mais por seu amor à teoria da "substituição" do que por todos os seus raciocínios.

É muito duvidoso, ademais, que se possa considerar a filosofia de Bogdanov como um sistema imutável e acabado. 1899 a 1908, as flutuações filosóficas de Bogdanov passaram por quatro fases. A princípio, foi materialista "naturalista (noutros termos, semi-inconsciente, inconscientemente fiel ao espírito das ciências naturais). Seus Elementos fundamentais a concepção histórica da natureza contêm características evidentes dessa etapa. A segunda fase foi a da Energética, de Ostwald, em moda por volta de 1895-1900, isto é, do agnosticismo confuso desviando-se aqui e ali até o idealismo. Um pouco mais tarde, Bogdanov passava de Ostwald a Mach, adotando as premissas fundamentais do idealismo subjetivo, inconsequente e confuso como toda a filosofia de Mach (o frontispício do Curso de filosofia natural, de Ostwald, traz estas palavras: Dedicado a E. Mach). Quarta fase: tentativa de se desfazer de algumas contradições da doutrina de Mach e de criar uma aparência de idealismo objetivo. A "teoria da substituição geral" revela que Bogdanov descreveu, a contar do seu ponto de partida, um arco de círculo de cerca de 180°. Essa fase de sua filosofia está mais distanciada do materialismo dialético do que as precedentes ou encontra-se mais perto? Se Bogdanov marca passo, conclui-se que se distancia do materialismo. Se persiste em prosseguir na curva que vem precorrendo há nove anos, ele se aproxima: não falta dar senão um passo para,a volta ao materialismo. Concretizemos: falta apenas rejeitar universalmente sua "substituição universal", que reúne, num verdadeiro quebra-cabeça chinês, todos os pecados do idealismo equivoco, todas as deficiências do idealismo subjetivo consequente, do mesmo modo que (si licet parva componere magnis! — se é permitido comparar o pequeno ao grande) a "ideia absoluta" de Hegel une todas as contradições do idealismo de Kant a todas as deficiências de Fichte. Feuerbach teve apenas um passo decidido a dar para atingir o materialismo: repelir plenamente, eliminar inteiramente a ideia absoluta, essa "substituição" hegeliana da natureza física pelo "psíquico". Feuerbach afastou o quebra-cabeça chinês do idealismo filosófico: tomou por base a natureza sem qualquer "substituição".

Quem viver verá se o quebra-cabeça chinês do idealismo de Mach ainda se complicará por muito tempo.


Inclusão 13/12/2014