Introdução à "Dialéctica da Natureza"[N27]

Friedrich Engels

1876

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Primeira Edição: Escrito em 1875-1876. Publicado pela primeira vez, em alemão e em russo, em Arquivo de Marx e Engels, livro II, 1925. Publicado segundo o texto do manuscrito. Traduzido do alemão.
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial "Avante!" - Edição dirigida por um colectivo composto por: José BARATA-MOURA, Eduardo CHITAS, Francisco MELO e Álvaro PINA, tomo III, pág: 43-61.
Tradução: José BARATA-MOURA.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982.


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A investigação moderna da Natureza, a única que levou a um desenvolvimento científico, sistemático, omnilateral, em oposição às geniais intuições de filosofia natural dos Antigos e às descobertas dos Árabes, altamente significativas, mas esporádicas e, na maior parte, desaparecidas sem resultados — a investigação moderna da Natureza data, como toda a história moderna, daquela época poderosa a que nós, alemães, segundo a infelicidade nacional que então nos atingiu, chamamos Reforma, os franceses Renaissance(1*) e os italianos Cinquecento(2*), e que nenhum destes nomes expressa exaustivamente. É a época que começa com a última metade do século XV. A realeza, apoiando-se nos burgueses das cidades, quebrou o poder da nobreza feudal e fundou as grandes monarquias baseadas essencialmente na nacionalidade, nas quais as nações europeias modernas e a sociedade burguesa moderna chegaram ao desenvolvimento; e, enquanto burgueses e nobreza ainda ajustavam contas, a guerra alemã dos camponeses[N28] apontava profeticamente para lutas de classes futuras, na medida em que trazia para a cena não apenas os camponeses sublevados — o que já não era novo — mas, por detrás deles, os começos do proletariado actual, com a bandeira vermelha na mão e a reivindicação da comunidade de bens nos lábios. Nos manuscritos salvos da queda de Bizâncio, nas estátuas antigas desenterradas das ruínas de Roma, abriu-se ao Ocidente atónito um mundo novo: a Antiguidade grega; ante as suas figuras luminosas desvaneciam-se os espectros da Idade Média; a Itália ascendeu a um florescimento inesperado da arte que parecia uma como reverberação da Antiguidade clássica e que nunca mais voltou a ser alcançado. Em Itália, na França, na Alemanha, surgiu uma nova literatura, a primeira literatura moderna; a Inglaterra e a Espanha viveram logo depois a sua época clássica da literatura. Os limites da velha orbis terrarum(3*) foram quebrados, a Terra foi agora propriamente descoberta pela primeira vez e foi assente o fundamento para o ulterior comércio mundial e para a transição da oficina [artesanal] para a manufactura que formou, de novo, o ponto de partida para a grande indústria moderna. A ditadura espiritual da Igreja foi quebrada; os povos germânicos, na sua maioria, rejeitaram-na directamente e adoptaram o protestantismo, enquanto, entre os românicos, um alegre livre-pensamento [Freigeisterei], tomado dos Árabes e alimentado pela filosofia grega recentemente descoberta, cada vez mais deitava raízes e preparava o materialismo do século XVIII.

Foi o maior revolucionamento progressivo [progressiv] que a humanidade até então tinha vivido, um tempo que precisava de gigantes e engendrou gigantes — gigantes em força de pensamento, paixão e carácter, em multilateralidade e erudição. Os homens que fundaram a dominação moderna da burguesia eram tudo menos burguesmente limitados. Pelo contrário, o carácter de aventura do tempo soprou mais ou menos sobre eles. Não há quase nenhum homem significativo que então vivesse que não tivesse feito viagens longínquas, que não falasse quatro a cinco línguas, que não brilhasse em várias especialidades. Leonardo da Vinci era não só um grande pintor, como também um grande matemático, mecânico e engenheiro, a quem os mais diversos ramos da física devem importantes descobertas; Albrecht Dürer era pintor, gravador, escultor, arquitecto e, além disso, inventou um sistema de fortificação que já contém muitas das ideias bastante mais tarde retomadas por Montalembert e pela [ciência da] fortificação alemã moderna. Maquiavel era estadista, historiógrafo, poeta e, ao mesmo tempo, o primeiro escritor militar dos tempos modernos digno de ser nomeado. Lutero, não só limpou os estábulos de Augias(4*) da Igreja, como também os da língua alemã, criou a prosa alemã moderna e compôs o texto e a melodia daquele coral certo da vitória que se tornou a Marseillaise(5*) do século XVI[N29]. Os heróis daquele tempo ainda não estavam escravizados pela divisão do trabalho, cujos efeitos limitadores e unilateralizantes nós tão frequentemente sentimos nos seus sucessores. O que, porém, lhes é próprio é que quase todos eles vivem e labutam no meio do movimento do tempo, da luta prática, tomam partido e lutam, uns pela palavra e pela escrita, outros pela espada, muitos com ambas. Daí aquela plenitude e força do carácter que faz deles homens inteiros. Sábios de gabinete são a excepção: ou gente de segunda e terceira ordem ou cautelosos filisteus que não querem queimar os dedos.

Nessa altura, a investigação da Natureza movia-se também no meio da revolução geral e era ela própria, de uma ponta à outra, revolucionária; tinha, contudo, de lutar pelo direito à existência. De braço dado com os grandes italianos, de quem data a filosofia moderna, forneceu os seus mártires às fogueiras e às prisões da Inquisição. E é assinalável que os protestantes tenham ultrapassado os católicos na perseguição à investigação livre da Natureza. Calvino mandou queimar Servet quando este estava a ponto de descobrir o curso da circulação do sangue, e isto deixando-o assar vivo durante duas horas; a Inquisição, pelo menos, contentou-se simplesmente em queimar Giordano Bruno.

O acto revolucionário pelo qual a investigação da Natureza declarou a sua independência, e por assim dizer, repetiu a queima da bula(6*) por Lutero, foi a publicação da imortal obra em que Copérnico — apesar de timidamente e por assim dizer só no leito de morte — desafiou a autoridade eclesiástica em coisas naturais[N30]. De então data a emancipação da investigação da Natureza face à teologia, se bem que a discriminação das pretensões singulares recíprocas se arraste até aos nossos dias e, em muitas cabeças, ainda esteja longe de se ter completado. Mas, a partir de então, o desenvolvimento das ciências avançou também com passos de gigante e ganhou em força, bem se pode dizer, na proporção do quadrado da distância (em tempo) desde o seu ponto de partida. Foi como se houvesse que demonstrar ao mundo que, doravante, para o produto mais elevado da matéria orgânica, o espírito humano, valia a lei do movimento inversa da que [vale] para a matéria inorgânica.

O trabalho principal no primeiro período da ciência da Natureza que então começava foi dominar a matéria [Staff] que estava próxima. Na maioria dos domínios, tinha de se começar tudo desde o [estado] bruto. A Antiguidade tinha legado o sistema solar de Euclides e o ptolemaico, os Árabes a notação decimal, os começos da álgebra, os números modernos e a alquimia; a Idade Média cristã, nada. Nesta situação, necessariamente que a ciência da Natureza mais elementar, a mecânica dos corpos terrestres e celestes, tomou o primeiro lugar e, ao lado dela, ao serviço dela, a descoberta e o aperfeiçoamento dos métodos matemáticos. Aqui, muito foi alcançado. No fim do período, que foi assinalado por Newton e Lineu, vemos estes ramos da ciência levados a um certo acabamento. Os métodos matemáticos mais essenciais estão fixados nas suas linhas fundamentais; a geometria analítica, sobretudo, por Descartes, os logaritmos por Neper, o cálculo diferencial e o cálculo integral por Leibniz e, talvez, Newton(7*). O mesmo vale para a mecânica dos corpos sólidos, cujas principais leis foram claramente expostas de uma vez por todas. Finalmente, na astronomia do sistema solar, Kepler tinha descoberto as leis do movimento dos planetas e Newton tinha-as apreendido sob o ponto de vista de leis universais do movimento da matéria. Os outros ramos da ciência da Natureza estavam eles próprios muito afastados deste acabamento provisório. A mecânica dos corpos fluidos e gasosos só pelo fim do período foi mais trabalhada.(8*) A física propriamente dita não tinha ainda ultrapassado os primeiros começos, se exceptuarmos a óptica, cujos progressos excepcionais foram provocados pelas necessidades práticas da astronomia. A química mal começava a emancipar-se da alquimia pela teoria flogística[N31]. A geologia ainda não tinha ultrapassado o estádio embrionário da mineralogia; a paleontologia não podia, portanto, existir ainda. Finalmente, no domínio da biologia, estava-se ainda essencialmente ocupado com o coleccionamento e primeira triagem do imenso material, tanto do botânico e zoológico, como do anatómico e propriamente fisiológico. Ainda não podia ser questão da comparação das formas de vida entre si, da investigação da sua distribuição geográfica, das suas condições de vida climatológicas, etc. Aqui, a botânica e a zoologia só chegavam a um acabamento aproximado com Lineu.

Mas, o que caracteriza particularmente este período é a elaboração de uma visão de conjunto peculiar cujo ponto central é formado pela perspectivada absoluta imutabilidade da Natureza. Como quer que a própria Natureza se tenha feito: uma vez dada, permanece tal como era, enquanto subsistir. Os planetas e os seus satélites, uma vez postos em movimento pelo misterioso «primeiro impulso» giram sem parar nas elipses que lhes estão prescritas para toda a eternidade ou, em qualquer caso, até ao fim de todas as coisas. As estrelas repousam para sempre fixas e imóveis nos seus lugares, sustentando-se neles umas às outras pela «gravitação universal». A Terra havia permanecido imutavelmente a mesma desde todos os tempos ou também (segundo a opinião) desde o dia da sua criação. As «cinco partes do mundo» actuais subsistiram sempre, tiveram sempre as mesmas montanhas, vales e rios, o mesmo clima, a mesma flora e fauna, a menos que pela mão do homem tivesse tido lugar [alguma] mudança ou transplantação. As espécies das plantas e dos animais foram fixadas de uma vez por todas no seu nascimento, o mesmo engendrou continuamente o mesmo, e já foi muito quando Lineu admitiu que, aqui e além, podiam possivelmente gerar-se novas espécies por cruzamento. Em oposição à história da humanidade, que se desenvolve no tempo, era atribuído à história da Natureza apenas um desdobramento no espaço. Era negada toda a mudança, todo o desenvolvimento, na Natureza. A ciência da Natureza, no começo tão revolucionária, estava de repente perante uma Natureza, de uma ponta à outra, conservadora, na qual tudo ainda hoje era tal como era desde o começo e na qual — até ao fim do mundo ou para a eternidade — tudo devia permanecer tal como desde o começo tinha sido.

A ciência da Natureza da primeira metade do século dezoito estava tão acima da Antiguidade grega em conhecimento e mesmo em triagem da matéria [Stoff], quanto estava abaixo dela no domínio ideal [ideelle Bewältigung] da mesma, na visão geral da Natureza. Para os filósofos gregos, o mundo era essencialmente algo de saído do caos, algo de desenvolvido, algo que tinha devindo. Para os investigadores da Natureza do período de que tratamos, ele era algo de ossificado, algo de imutável, para a maior parte deles, algo de feito de um só golpe. A ciência mergulhava ainda profundamente na teologia. Acima de tudo, ela procura e encontra, como [instância] última, um impulso a partir de fora, que não há que explicar a partir da própria Natureza. Mesmo que a atracção, baptizada de maneira pomposa por Newton gravitação universal, seja apreendida como propriedade essencial da matéria [Materie], de onde vem a força tangencial inexplicada que primeiro dá origem às órbitas dos planetas? Como surgiram as inúmeras espécies de plantas e animais? E, acima de tudo, como [surgiu] o homem, acerca do qual está, contudo, estabelecido que não existe desde a eternidade? A semelhantes perguntas a ciência da Natureza só respondia demasiado frequentemente tornando o criador de todas as coisas responsável por isso. Copérnico, no começo do período, escreve à teologia uma carta de recusa; Newton fecha-o, com o postulado do primeiro impulso divino. O pensamento geral mais elevado a que esta ciência da Natureza se alçou foi o da conformidade a fins dos dispositivos da Natureza, a teleologia superficial de Wolff, em que os gatos foram criados para comer os ratos, os ratos para serem comidos pelos gatos, e a Natureza toda para manifestar a sabedoria do criador. Contribuiu para a maior honra da filosofia daquela altura que ela não se tivesse deixado desconcertar pelo estado limitado dos conhecimentos da Natureza naquele tempo, que ela — desde Espinosa até aos grandes materialistas franceses — tenha perseverado em explicar o mundo a partir de si próprio e tenha deixado à ciência da Natureza do futuro a justificação no pormenor.

Incluo ainda os materialistas do século dezoito neste período, porque não tinham qualquer outro material [Material] científico-natural à sua disposição do que o acima descrito. O escrito de Kant, que fez época, permanecia para eles um segredo e Laplace veio muito depois deles[N32]. Não esqueçamos que esta visão antiquada da Natureza, apesar de esburacada por todos os lados pelo progresso da ciência, tinha dominado toda a primeira metade do século dezanove(9*) e ainda hoje, quanto ao principal, é ensinada nas escolas (11).

A primeira brecha nesta visão petrificada da Natureza foi aberta não por um investigador da Natureza mas por um filósofo. Em 1755, apareceu a História Universal da Natureza e Teoria do Céu de Kant. A pergunta pelo primeiro impulso foi eliminada; a Terra e todo o sistema solar apareciam como algo que tinha devindo no decurso do tempo. Se a grande maioria dos investigadores da Natureza tivesse tido menos aversão pelo pensar que Newton expressa no aviso: Física, guarda-te da metafísica![N33] — teria tido de tirar desta só descoberta genial de Kant consequências que lhe teria poupado desvios sem fim, uma quantidade imensa de tempo e de trabalho gastos em direcções falsas. Pois na descoberta de Kant reside o ponto manante de todo o progresso ulterior. Se a Terra era algo que tinha devindo, o seu presente estado geológico, geográfico, climático, as suas plantas e animais, tinham igualmente de ser algo de devindo, tinham de ter uma história, não só no espaço umas ao lado das outras, mas também no tempo umas a seguir às outras. Se se tivesse decidido logo continuar a investigar nesta direcção, a ciência da Natureza estaria agora significativamente mais longe do que está. Mas, que podia vir de bom da filosofia? O escrito de Kant permaneceu sem resultado imediato até que, longos anos mais tarde, Laplace e Herschel desenvolveram o seu conteúdo e o fundamentaram mais, pormenorizadamente, assegurando gradualmente, com isso, reconhecimento à «hipótese da nebulosa». Descobertas ulteriores proporcionaram a sua vitória final; de entre elas, as mais importantes foram: o movimento próprio das estrelas fixas, a demonstração [da existência] no espaço cósmico [Weltraum] de um meio resistente, a demonstração fornecida pela análise espectral da identidade química da matéria cósmica e do subsistir de massas nebulosas incandescentes tais como Kant as havia pressuposto(12).

É, porém, permitido duvidar de se a maioria dos investigadores da Natureza teriam chegado tão cedo à consciência da contradição de uma terra que se muda dever conter organismos imutáveis, se a visão que desponta — segundo a qual a Natureza não é, mas devem e perece — não tivesse recebido ajuda de outro lado. A geologia nasceu e apresentou, não apenas camadas terrestres formadas sucessivamente e dispostas umas sobre as outras, mas também, nessas camadas, conchas e esqueletos conservados de animais extintos, de troncos, folhas e frutos de plantas que já não se encontram. Houve que decidir-se a reconhecer que não apenas a Terra, grosso modo, mas também a sua superfície actual e as plantas e os animais que aí vivem, tinham uma história temporal. A princípio, o reconhecimento aconteceu bastante contra vontade. A teoria das revoluções da Terra de Cuvier era revolucionária na frase e reaccionária no conteúdo [Sache]. No lugar da criação divina única punha toda uma série de actos de criação repetidos, fazia do milagre uma alavanca essencial da Natureza. Só Lyell trouxe discernimento [Verstand] à geologia, ao substituir as revoluções repentinas provocadas pelos caprichos do criador pelos efeitos graduais de uma lenta transformação [Umgestaltung] da Terra(13*).

A teoria de Lyell era ainda mais incompatível com a admissão de espécies orgânicas constantes do que todas as suas predecessoras. Transformação gradual da superfície da Terra e de todas as condições de vida conduzia directamente à transformação gradual dos organismos e à sua adaptação ao ambiente mutável, à variabilidade das espécies. Mas a tradição é um poder, não apenas na Igreja Católica, mas também na ciência da Natureza. O próprio Lyell não viu durante anos a contradição, os seus discípulos ainda menos. Isto só pode explicar-se pela divisão do trabalho que, entretanto, se tornou dominante na ciência da Natureza, que, mais ou menos, limitava cada um à sua especialidade [Fach] própria [speziell] e que só a poucos não privava da visão geral.

Entretanto, a física tinha feito progressos poderosos, cujos resultados foram reunidos, quase ao mesmo tempo, por três homens diversos, no ano de 1842, que fez época para este ramo da investigação da Natureza. Mayer, em Heilbronn, e Joule, em Manchester, demonstraram a conversão [Umschlag] do calor em força mecânica e da força mecânica em calor. O estabelecimento do equivalente mecânico do calor colocava este resultado fora de questão. Pela mesma altura, Grove(14*) — que não era nenhum investigador da Natureza de profissão, mas um advogado inglês — demonstrou, por simples elaboração dos resultados físicos isolados já alcançados, o facto de que todas as chamadas forças físicas — força mecânica, calor, luz, electricidade, magnetismo — e mesmo a chamada força química, sob determinadas condições se convertem umas nas outras, sem que tenha lugar qualquer perda de força e, assim, demonstrou, posteriormente por via física, a proposição de Descartes segundo a qual a quantidade de movimento presente no mundo é constante(15). Com isto, as forças físicas particulares —por assim dizer, as «espécies» imutáveis da física — resolviam-se em formas de movimento da matéria diversamente diferenciadas e passando de umas a outras segundo leis determinadas. A casualidade do subsistir de muitas, estas ou aquelas, forças físicas era eliminada da ciência, na medida em que se demonstravam as suas conexões e transições. A física, tal como já a astronomia, tinha chegado a um resultado que, com necessidade, remetia, como [instância] última, para a eterna circulação da matéria que se move.

O desenvolvimento maravilhosamente rápido da química desde Lavoisier e, particularmente, desde Dalton atacou, por um outro lado, as velhas representações acerca da Natureza. A fabricação, por via inorgânica, de combinações até então só produzidas em organismos vivos demonstrou que as leis da química para os corpos orgânicos tinham a mesma validade para inorgânicos e preenchia uma grande parte do abismo entre a Natureza orgânica e inorgânica, segundo Kant intransponível para a eternidade.

Finalmente, no domínio da investigação biológica também, nomeadamente as viagens e expedições científicas sistematicamente empreendidas desde meados do século passado, a exploração [Durchforschung] mais minuciosa das colónias europeias em todas as partes do mundo por especialistas vivendo lá, além disso, os progressos da paleontologia, da anatomia e fisiologia, em geral, sobretudo,depois do emprego sistemático do microscópio e da descoberta da célula, reuniram tanto material que a aplicação do método comparativo se tornou possível e, ao mesmo tempo, necessário(16). Por um lado, pela geografia física comparada, foram estabelecidas as condições de vida das diversas floras e faunas; por outro lado, os diversos organismos foram comparados entre si, segundo os seus órgãos homólogos, e isto, não apenas no estado da maturidade, mas em todos os seus estádios de desenvolvimento. Quanto mais profunda e minuciosamente esta investigação era conduzida, tanto mais se lhe desfazia nas mãos aquele sistema rígido de uma Natureza orgânica imutavelmente fixada. Não só espécies isoladas de plantas e animais se fundiam sem cessar umas nas outras, como também apareceram animais, como o amphioxus e lepidosiren[N34], que troçavam de toda a classificação até agora(17); e, finalmente, encontraram-se organismos, dos quais nem sequer se conseguia dizer se pertenciam ao reino das plantas ou ao reino dos animais. As lacunas no arquivo paleontológico preenchiam-se cada vez mais e obrigavam mesmo os mais renitentes a reconhecer o paralelismo flagrante que existe entre a história do desenvolvimento do mundo orgânico, grosso modo, e a do organismo singular, o fio de Ariadne que devia conduzir para fora do labirinto em que a botânica e a zoologia pareciam perder-se cada vez mais profundamente. Foi característico que, quase ao mesmo tempo do ataque de Kant à eternidade do sistema solar, C. F. Wolff, em 1759, tenha desfechado o primeiro ataque contra a fixidez das espécies e proclamado a doutrina da geração [Abstammungslehre][N36]. Mas, aquilo que nele era apenas antecipação genial tomou uma figura firme em Oken, Lamarck e Baer e, exactamente 100 anos mais tarde, em 1859, foi vitoriosamente realizado por Darwin[N37]. Quase ao mesmo tempo, foi constatado que o protoplasma e a célula — que anteriormente já tinham sido demonstrados como partes componentes formais últimas de todos os organismos — ocorrem como formas orgânicas mais inferiores vivendo independentemente. Com isto, tanto foi reduzido ao mínimo o abismo entre Natureza orgânica e inorgânica como eliminada uma das dificuldades mais essenciais que até então se opunha à teoria da geração dos organismos. A nova visão da Natureza estava, nas suas linhas fundamentais, pronta: tudo o que era rígido foi dissolvido, tudo o que era fixo foi volatilizado, tudo o que era [coisa] particular tida por eterna tornou-se transitória, toda a Natureza foi mostrada como movendo-se num fluxo e circulação eternos.

E, assim, estamos de novo regressados à maneira de ver dos grandes fundadores da filosofia grega, a de que a Natureza toda, desde o mais pequeno até ao maior, dos grãos de areia até aos sóis, do protista[N38] até ao homem, têm a sua existência num nascer e perecer eternos, num fluxo ininterrupto, num movimento e mudança sem descanso. Apenas com a diferença essencial de que aquilo que entre os Gregos era intuição genial é, para nós, resultado rigorosamente científico, investigação conforme à experiência e, por isso, aparece também numa forma muito mais determinada e muito mais clara. É certo que a prova empírica deste ciclo não está totalmente livre de lacunas, mas elas são insignificantes em comparação com aquilo que já está seguramente estabelecido e, em cada ano, preenchem-se cada vez mais. E como poderia, no pormenor, a prova ser senão lacunar se se reflectir em que os ramos mais essenciais da ciência — a astronomia transplanetária, a química, a geologia — mal contam um século de existência científica, o método comparativo em fisiologia mal conta cinquenta anos, que a forma fundamental de quase todo o desenvolvimento da vida, a célula, ainda não há quarenta anos que foi descoberta!

A partir de massas de vapor incandescentes em turbilhão, cujas leis de movimento talvez sejam desvendadas depois das observações de vários séculos nos terem proporcionado claridade sobre o movimento próprio das estrelas, desenvolvem-se, por contracção e arrefecimento, os inumeráveis sóis e sistemas solares da nossa ilha cósmica [Weltinsel], limitada pelos anéis estelares mais extremos da Via Láctea. Manifestamente, este desenvolvimento não progrediu por toda a parte de um modo igualmente rápido. A existência de corpos escuros, não simplesmente planetares, portanto, de sóis calcinados, no nosso sistema estelar, impõe-se cada vez mais à astronomia (Mädler); por outro lado (segundo Secchi), uma parte das manchas nebulosas vaporiformes pertence ao nosso sistema estelar como sóis ainda não acabados, pelo que não está excluído que outras nebulosas, como Mädler afirma, sejam longínquas ilhas cósmicas autónomas, cujo estádio relativo de desenvolvimento o espectroscópio terá de fixar.

Como é que de uma massa de vapor isolada se desenvolve um sistema solar, demonstrou-o em pormenor Laplace de uma maneira até agora inultrapassada; a ciência ulterior confirmou-o cada vez mais.

Sobre os corpos singulares assim formados — tanto sóis como planetas e satélites — reina, no começo, aquela forma de movimento da matéria a que chamamos calor. Não se pode tratar de combinações químicas de elementos mesmo a uma temperatura como ainda hoje o Sol tem; em que medida o calor aí se converte em electricidade ou magnetismo, continuadas observações do Sol hão-de mostrá-lo; que os movimentos mecânicos que se dão no Sol provêm principalmente do conflito do calor com a gravidade, já está hoje provado.

Os corpos singulares arrefecem tanto mais depressa quanto mais pequenos são. Satélites, asteróides, meteoros, primeiro, como [aconteceu] com a nossa Lua, morta de há muito. Mais devagar, os planetas; mais devagar que tudo, os corpos centrais.

Com o arrefecimento progressivo, o jogo recíproco das formas físicas de movimento que se convertem umas nas outras cada vez mais vem para primeiro plano, até que, finalmente, é alcançado um ponto a partir do qual a afinidade química começa a fazer-se valer, em que os elementos até então quimicamente indiferentes começam a diferenciar-se quimicamente uns após os outros, adquirem propriedades químicas, entram em combinações uns com os outros. Estas combinações mudam continuamente com a diminuição de temperatura, a qual influencia diversamente, não só cada elemento, mas também cada combinação singular de elementos, mudam com a transição, daquela dependente, de uma parte da matéria gaseiforme ao estado líquido, primeiro, ao estado sólido, depois, e mudam com as novas condições assim criadas.

O tempo em que um planeta tem uma crosta sólida e acumulações de água à sua superfície coincide com aquele em que o seu calor próprio recua cada vez mais face ao calor que lhe é enviado pelo corpo central. A sua atmosfera torna-se palco de fenómenos meteorológicos, no sentido em que hoje entendemos a palavra; a sua superfície torna-se palco de alterações geológicas em que os depósitos ocasionados pelas precipitações atmosféricas adquirem uma preponderância sempre maior sobre os efeitos para o exterior, lentamente decrescentes, do interior fluido candente.

Se a temperatura se equilibrar finalmente tanto que, pelo menos numa porção considerável da superfície, não ultrapasse mais os limites em que a albumina é capaz de viver, forma-se, em semelhantes pré-condições químicas favoráveis, protoplasma vivo. Quais são essas pré-condições, ainda hoje não o sabemos, o que não é de admirar, uma vez que a fórmula química da albumina até hoje nem sequer está fixada, uma vez que ainda nem sequer sabemos quantos corpos albuminosos quimicamente diversos há e uma vez que só aproximadamente há dez anos é que é conhecido o facto de que a albumina, completamente desprovida de estrutura, cumpre todas as funções essenciais da vida — digestão, excreção, movimento, contracção, reacção a excitações, reprodução.

Podem ter passado milhares de anos até que aparecessem as condições nas quais o progresso seguinte acontecesse e essa albumina informe pudesse fabricar a primeira célula pela formação de núcleo e membrana. Mas, com esta primeira célula, estava dada também a base da constituição morfológica [Formbildung] de todo o mundo orgânico; primeiro, desenvolveram-se — tal como nos é permitido admitir segundo toda a analogia do arquivo paleontologia — inumeráveis espécies de protistas acelulares e celulares, das quais só o eozoon canadense[N39] chegou até nós e das quais algumas se diferenciaram gradualmente para [darem] as primeiras plantas e outras os primeiros animais. E, a partir dos primeiros animais, desenvolveram-se, essencialmente por ulterior diferenciação, as inumeráveis classes, ordens, famílias, géneros e espécies de animais, e, por último, a forma em que o sistema nervoso chega ao seu desenvolvimento mais completo, o dos vertebrados, e, novamente por último, entre estes, o vertebrado em que a Natureza ganha consciência de si própria — o homem.

Também o homem surge por diferenciação. Não apenas individualmente — a partir de uma única célula ovular diferencia-se até ao organismo mais complicado que a Natureza produz —, não, também historicamente. Quando, após lutas de milhares de anos, a diferenciação entre mão e pé, a posição erecta, foram finalmente fixadas, então o homem ficou separado do macaco, então foi colocado o fundamento para o desenvolvimento da linguagem articulada e para o poderoso aperfeiçoamento [Ausbildung] do cérebro que, a partir de então, tornou intransponível o abismo entre o homem e o macaco. A especialização da mão — isto significa o utensílio, e o utensílio significa a actividade especificamente humana, a retroacção modificadora do homem sobre a Natureza, a produção. Também há animais, no sentido restrito da palavra, que têm utensílios, mas apenas como membros do seu corpo — a formiga, a abelha, o castor; há também animais que produzem, mas o seu efeito produtivo sobre a Natureza circundante é, em face desta, quase nulo. Só o homem conseguiu imprimir o seu selo à Natureza, uma vez que, não só deslocou plantas e animais, como também alterou o aspecto, o clima, do seu domicílio, [alterou] mesmo as plantas e os animais, de tal maneira que as consequências da sua actividade só podem desaparecer com a extinção geral do globo terrestre. E ele conseguiu isto, antes do mais e essencialmente, por intermédio da mão. Mesmo a máquina a vapor, até agora o seu utensílio mais poderoso para a modificação da Natureza, assenta, porque é utensílio, em última instância, na mão. Mas, com a mão desenvolveu-se passo a passo a cabeça, veio a consciência, primeiro, das condições de resultados úteis [Nutzeffekte] práticos isolados e, mais tarde, entre os povos mais favorecidos, a penetração, daí decorrente, nas leis da Natureza que os condicionam. E, com o conhecimento rapidamente crescente das leis da Natureza, cresceram os meios de retroacção sobre a Natureza; a mão sozinha nunca teria chegado à máquina a vapor se o cérebro do homem não se tivesse desenvolvido correlativamente, com ela, junto dela e, em parte, por ela.

Com os homens, entramos na história. Os animais também têm uma história, a da sua geração e gradual desenvolvimento até ao seu estado actual. Mas essa história é feita para eles e, na medida em que eles próprios participam nela, ela acontece sem o seu saber e querer. Os homens, pelo contrário, quanto mais se afastam do animal, em sentido restrito, tanto mais fazem eles a sua própria história com consciência, tanto mais diminuta se torna a influência de efeitos imprevistos, de forças incontroladas, sobre esta história, tanto mais exactamente corresponde o resultado [Erfolg] histórico ao objectivo previamente fixado. Se aplicarmos, porém, esta escala à história humana, mesmo dos povos mais desenvolvidos do presente, verificamos que aqui continua a existir uma desproporção colossal entre os objectivos previamente colocados e os resultados alcançados, que os efeitos imprevistos predominam, que as forças incontroladas são, de longe, mais poderosas do que as postas planificadamente em movimento. E isto não pode ser de outra maneira enquanto a actividade histórica mais essencial dos homens — aquela que os elevou da animalidade à humanidade, que forma a base material de todas as suas restantes actividades: a produção daquilo de que necessitam para viver [Lebensbedurfnisse], isto é, hoje em dia, a produção social — estiver, por maioria de razão, submetida ao jogo recíproco de efeitos inintencionais de forças incontroladas e só realizar o objectivo querido de maneira excepcional, e de longe mais frequentemente o seu preciso contrário. Nos países industriais mais avançados, domámos as forças da Natureza e compelimo-las ao serviço dos homens; com isso, multiplicámos a produção ao infinito, de tal modo que, agora, uma criança produz mais do que anteriormente cem adultos. E qual é a consequência? Trabalho excessivo [Uberarbeit] crescente e miséria crescente das massas e, todos os dez anos, um grande craque. Darwin não sabia que sátira amarga estava a escrever sobre os homens e, particularmente, sobre a gente do seu país quando demonstrou que a livre concorrência, a luta pela existência, que os economistas celebram como a mais alta conquista histórica, é o estado normal do reino animal. Só uma organização consciente da produção social, em que se produza e reparta planificadamente, pode elevar os homens acima do restante mundo animal, sob o ponto de vista social, tanto quanto a produção, em geral, o fez para os homens, sob o ponto de vista da espécie. O desenvolvimento histórico torna uma tal organização diariamente indispensável, mas também diariamente possível. Dela datará uma nova época da história, em que os próprios homens, e, com eles, todos os ramos da sua actividade, nomeadamente também a ciência da Natureza, prosperarão de tal maneira que atirará para uma treva profunda tudo o até aí [conseguido].

No entanto, «tudo o que nasce merece perecer»(18*). Milhões de anos podem passar, centenas de milhares de gerações nascerão e morrerão; mas, inexoravelmente, virá o tempo em que o calor do Sol a extinguir-se não mais chegará para derreter o gelo precipitando-se dos pólos, em que os homens, cada vez mais comprimidos em torno do Equador, não mais encontrarão aí finalmente calor suficiente para viver; em que, a pouco e pouco, o último vestígio de vida orgânica desaparecerá também e a Terra — globo morto, arrefecido, como a Lua — girará em profunda treva e em órbitas cada vez mais estreitas em torno de um Sol igualmente morto, até que, finalmente, cairá lá. Outros planetas a terão precedido, outros a seguirão; em vez do sistema solar harmoniosamente disposto, luminoso, quente, ficará apenas uma esfera morta, fria, seguindo o seu caminho solitário através do espaço cósmico. E, assim como acontece com o nosso sistema solar, acontecerá mais tarde ou mais cedo, com todos os outros sistemas da nossa ilha cósmica, acontecerá a todas as restantes inúmeras ilhas cósmicas, mesmo àqueles cuja luz nunca alcançará a Terra enquanto um olho humano nela viver para a sentir.

E, então, quando um semelhante sistema solar completa o seu curso de vida e lhe cabe o destino de todo o finito — a morte — que acontece? O cadáver do Sol continuará a girar como cadáver, para a eternidade, através do espaço infinito e todas as forças da Natureza, anteriormente infinitamente diversificadas e diferenciadas, se reduzirão, para sempre, a uma forma de movimento única da atracção?

«Ou», como Secchi pergunta (p. 810), «estão dadas na Natureza forças que possam devolver o sistema morto ao estado inicial da nebulosa incandescente e acordá-lo de novo para uma nova vida? Não o sabemos.»

Em todo o caso, não o sabemos no sentido em que sabemos que 2 x 2 = 4 ou que a atracção da matéria aumenta e diminui [na razão] do quadrado da distância. Mas, na ciência teórica da Natureza, que elabora o mais possível a sua visão da Natureza num todo harmónico e sem a qual, hoje em dia, mesmo o empirista mais desprovido de pensamento [gedankenlos](19*) não dá um passo, temos de contar muito frequentemente com grandezas incompletamente conhecidas e a consequência [Konsequenz](20*) do pensamento em todos os tempos teve de ajudar [a suprir] o conhecimento defeituoso. Ora, a ciência moderna da Natureza teve de adoptar da filosofia o princípio [Satz] da indestrutibilidade do movimento; ela já não pode subsistir sem ele. O movimento da matéria, porém, não é simplesmente o movimento mecânico grosseiro, a simples mudança de lugar; é calor e luz, tensão eléctrica e magnética, combinação e dissociação químicas, vida e, finalmente, consciência. Dizer que a matéria, durante toda a sua existência ilimitada no tempo, só uma única vez e por um tempo infinitamente curto face à sua eternidade se encontrou na possibilidade de diferenciar o seu movimento e de, assim, desdobrar toda a riqueza desse movimento e que, antes e depois, ela permanece, para a eternidade, limitada à simples mudança de lugar — isto significa afirmar que a matéria é mortal e que o movimento é transitório. A indestrutibilidade do movimento não pode ser apreendida de um modo simplesmente quantitativo, tem de ser apreendida também qualitativamente; uma matéria, cuja pura mudança mecânica de lugar certamente traz em si a possibilidade de, em condições favoráveis, se converter em calor, electricidade, acção química, vida, mas que não é capaz de produzir essas condições a partir de si própria — uma tal matéria perdeu movimento; um movimento que perdeu a capacidade de se converter nas diversas formas convenientes ainda tem, por certo dynamis(21*), mas já não tem nenhuma energeia(22*) e, portanto, foi em parte destruído. Ambas as coisas são, porém, impensáveis.

Isto é seguro: houve um tempo em que a matéria da nossa ilha cósmica tinha convertido em calor uma tal quantidade de movimento — de que espécie, não o sabemos até agora — que, a partir disso, se puderam desenvolver sistemas solares pertencentes (segundo Mädler) a, pelo menos, 20 milhões de estrelas, cuja extinção gradual é igualmente certa. Como ocorreu esta conversão? Sabemo-lo tanto quanto o padre Secchi sabe se o futuro eaput mortuum(23*) do nosso sistema solar se transformará de novo alguma vez em matéria-prima de novos sistemas solares. Mas aqui ou temos de recorrer ao criador ou somos forçados à conclusão de que a matéria-prima incandescente dos sistemas solares da nossa ilha cósmica foi produzida por via natural, por transformações de movimento que, por natureza, pertencem à matéria que se move e cujas condições têm, portanto, também de ser reproduzidas pela matéria, mesmo que só depois de milhões e milhões de anos, mais ou menos ocasionalmente, mas com a necessidade que também é inerente ao acaso.

A possibilidade de uma tal conversão é cada vez mais admitida. Chega-se à perspectiva de que os corpos celestes têm a determinação última de caírem uns nos outros e calcula-se mesmo a quantidade de calor que se tem que desenvolver aquando de semelhantes colisões. O cintilar repentino de novas estrelas, o luzir mais claramente não menos repentino de [estrelas] de há muito conhecidas, que a astronomia nos relata, explica-se da maneira mais fácil a partir de semelhantes colisões. Além disso, não só o nosso grupo de planetas se move à volta do Sol e o nosso Sol no interior da nossa ilha cósmica, como toda a nossa ilha cósmica se move no espaço cósmico em equilíbrio temporário, relativo, com as restantes ilhas cósmicas; pois, mesmo equilíbrio relativo de corpos flutuando livremente só pode existir por movimento reciprocamente condicionado; e muitos admitem que a temperatura no espaço cósmico não é por toda a parte a mesma. Finalmente: sabemos que à excepção de uma parte infinitamente pequena, o calor dos inúmeros sóis da nossa ilha cósmica se desvanece no espaço e se esforça em vão por elevar a temperatura do espaço cósmico nem que seja de um milionésimo de grau Celsius. Que acontece a toda esta enorme quantidade de calor? Esgotou-se para todo o sempre na tentativa de aquecer o espaço cósmico, deixou praticamente de existir e ainda só subsiste teoricamente no facto de que o espaço cósmico se tornou mais quente numa fracção decimal de grau que começa por dez ou mais zeros? Esta admissão nega a indestrutibilidade do movimento; deixa a possibilidade de que, pela queda sucessiva de corpos celestes uns nos outros, todo o movimento mecânico dado seja transformado em calor e este seja irradiado no espaço cósmico, com o que, apesar de toda a «indestrutibilidade da força», todo o movimento em geral teria cessado. (Note-se aqui, de passagem, quão errónea é a designação: indestrutibilidade da força, em vez de: indestrutibilidade do movimento.) Chegamos, portanto, à conclusão de que — por uma via de que será algo mais tarde tarefa da investigação da Natureza mostrar — o calor irradiado para o espaço cósmico tem de ter a possibilidade de se converter numa outra forma de movimento, em que novamente pode chegar à concentração e à reactivação. E, com isto, cai a principal dificuldade que se opunha à retransformação de sóis extintos em vapor incandescente.

De resto, a sucessão de mundos repetindo-se eternamente no tempo sem fim é apenas o complemento lógico do existir de inúmeros mundos uns ao lado dos outros no espaço sem fim — um princípio cuja necessidade se impôs mesmo ao cérebro yankee(24) antiteórico de Draper(25).

É num curso circular eterno que a matéria se move, curso circular que só completa a sua órbita em espaços de tempo para os quais o nosso ano terrestre já não é mais escala suficiente; um curso circular, em que o tempo do desenvolvimento mais elevado, o tempo da vida orgânica e, mais ainda, o da vida de seres autoconscientes e conscientes da Natureza é medido tão apertadamente como o espaço em que a vida e a autoconsciência vêm a vigorar; um curso circular, em que cada modo finito de existência da matéria — seja ele sol ou nuvem de vapor, animal singular ou género animal, combinação ou dissociação química — é do mesmo modo transitório e em que não há nada de eterno senão a matéria que eternamente se altera, que eternamente se move, e as leis segundo as quais ela se move e altera. Mas, por mais frequente e por mais inexoravelmente que este curso circular se complete no tempo e no espaço; por mais milhões de sóis e de terras que possam nascer e perecer; por mais tempo que possa levar até que num sistema solar se estabeleçam, só num planeta, as condições da vida orgânica; por mais seres orgânicos inumeráveis que tenham que surgir e sucumbir antes de que, do meio deles, se desenvolvam animais com um cérebro capaz de pensar e encontrem, por um curto lapso de tempo, condições capazes para a vida, para, então, serem também exterminados sem piedade — temos a certeza de que a matéria, em todas as suas transformações, permanece eternamente a mesma, de que nçnhum dos seus atributos se pode perder, e de que, por isso, também com a mesma necessidade férrea com que exterminará de novo da Terra a sua flor suprema, o espírito pensante, terá de novo que o produzir, nalgum outro sítio e noutro tempo.


Notas de rodapé:

(1*) Em francês no texto: Renascimento. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(2*) Em italiano no texto: Quinhentos. Trata-se de uma maneira de designar o século XVI. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(3*) Em latim no texto: literalmente, orbe das terras, isto é, globo terrestre. Expressão por que os Romanos designavam a Terra. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(4*) Estábulos de Augias: segundo o mito grego eram os grandes estábulos do rei Augias que foram descuidados durante muitos anos e que finalmente foram limpos por Hércules. A expressão designa algo de sujo ou descuidado. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(5*) Em francês no texto: Marselhesa. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(6*) Em 1520, Lutero queimou publicamente em Wittenberg a bula papal que o exortava a retratar-se. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(7*) Newton e Leibniz inventaram este cálculo independentemente um do outro. {Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(8*) Na margem do manuscrito, Engels anotou a lápis: «Torricelli por ocasião da regulação das torrentes dos Alpes.» (retornar ao texto)

(9*) Na margem do manuscrito, Engels fez a seguinte observação: «A fixidade da velha visão da Natureza forneceu o terreno para a apreensão geral do conjunto da ciência da Natureza como um todo. Os enciclopedistas franceses, ainda puramente mecânicos(10*), paralelamente; depois, simultaneamente, S[aint]t. Simon e a filosofia alemã da Natureza, completada por Hegel(retornar ao texto)

(10*) Hoje diríamos: mecanicistas. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(11*) Quão inabalavelmente, ainda em 1861, um homem pode acreditar nesta perspectiva, [um homem] cujas realizações científicas forneceram material altamente significativo para a sua eliminação, mostram-no as seguintes palavras clássicas: «Todos [os dispositivos no sistema do nosso Sol visam, na medida em que estamos em condições de o penetrar, a preservação do subsistente e a sua duração inalterável. Assim como nenhum animal, nenhuma planta, da Terra, desde os tempos mais antigos, se tornou mais perfeito ou, em geral, diferente, assim como nós em todos os organismos apenas encontramos estádios paralelos e não sucessivos, assim como o nosso próprio género, no que se refere ao corpo, sempre permaneceu o mesmo — assim também mesmo a maior diversidade de corpos celestes coexistentes não nos autoriza a admitir nessas formas simples estádios diversos de desenvolvimento; pelo contrário, todo o criado é igualmente perfeito] em si» (Mädler, Pop. Astr., Berlin 1861, 5 Aufl., S. 316). (Nota de Engels.)
O livro a que Engels se está a referir é: J. H. Mädler, Der Wunderbau des Weltalls, oder Populäre Astronomie [O Edifício Maravilhoso do Universo, ou Astronomia Popular], 5 Aufl., Berlin 1861. (retornar ao texto)

(12*) Na margem, Engels fez a seguinte observação a lápis: «Retardamento das rotações pelas marés, também de Kant, só agora entendido.» (retornar ao texto)

(13*) O defeito de visão de Lyell — pelo menos na sua primeira forma — estava em que ele concebia as forças que agem sobre a Terra como constantes, constantes segundo a qualidade e a quantidade. Para ele, não havia o arrefecimento da Terra; a Terra não se desenvolve numa direcção determinada, transforma-se de uma maneira desconexa, casual. (Nota de Engels). (retornar ao texto)

(14*) Engels refere-se a uma conferência de William Robert Grove, proferida em Londres em Janeiro de 1842, publicada logo pouco depois, e recolhida no volume: The Correlation of Physical Forces [A Correlação de Forças Físicas], Londres, 1846, que Engels utilizou na sua terceira edição de 1855. (Nota da edição portuguesa .) (retornar ao texto)

(15*) Cf. Descartes, De Mundo [Do Mundo], I; Carta a de Beaune, de 30 de Abril de 1639 e Principia philosophiae [Princípios da Filosofia], II, § 36. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(16*) À margem do manuscrito, Engels observou: «Embriologia.» (retornar ao texto)

(17*) A margem do manuscrito, Engels observou: «Ceratodus. O mesmo, Archaeopteryx, etc.»[N35] (retornar ao texto)

(18*) Palavras de Mefistófeles no Faust [Fausto], de Goethe, parte I, cena 3. (retornar ao texto)

(19*) Isto é, aquele empirismo que negasse qualquer utilidade à teoria em nome da suficiência dos «factos positivos». O século XVIII e depois o século XIX conheceram tradições empiristas e positivistas, fortemente hostis à teoria — e que Engels aqui precisamente denuncia —, de interpretação do famoso e controverso hypotheses non fingo [não imagino hipóteses] de Newton. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(20*) Isto é, o desenvolvimento consequente do pensamento, mediante diferentes operações lógicas. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(21*) Em grego: possibilidade ou potência. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(22*) Em grego: actualização ou acto. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(23*) Em latim no texto; literalmente: cabeça morta; aqui, tem o sentido de: resíduos, restos mortais. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(24*) Em inglês no texto: ianque, nativo dos Estados Unidos da América do Norte. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(25*) «The multiplicity of worlds in infinite space leads to the conception of a succession of worlds in infinite time.» Draper, Hist. Int. Devel., vol. II, p. [325](26). (Nota de Engels.) (retornar ao texto)

(26*) «A multiplicidade dos mundos no espaço infinito leva à concepção de uma sucessão de mundos no tempo infinito.» John William Draper, History of the Intellectual Development of Europe [História do Desenvolvimento Intelectual da Europa], London, 1864, vol. II, p. 325.(27*) (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(27*) «A multiplicidade dos mundos no espaço infinito leva à concepção de uma sucessão de mundos no tempo infinito.» John William Draper, History of the Intellectual Development of Europe [História do Desenvolvimento Intelectual da Europa], London, 1864, vol. II, p. 325. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N27] Dialektik der Natur (Dialéctica da Natureza): uma das principais obras de F. Engels; nela é feita uma síntese materialista dialéctica das maiores descobertas das ciências da Natureza de meados do século XIX, é desenvolvida a dialéctica materialista e feita a crítica das concepções idealistas e metafísicas nas ciências da Natureza.
No índice do terceiro caderno de materiais da Dialéctica da Natureza, redigido por Engels, esta «Introdução» é denominada «Velha Introdução». Pode ser datada de 1875 ou 1876. É possível que a primeira parte da «Introdução» tenha sido escrita em 1875 e a segunda na primeira metade de 1876. (retornar ao texto)

[N28] Trata-se da Grande Guerra Camponesa na Alemanha de 1524-1525. (retornar ao texto)

[N29] Engels refere-se ao hino de Lutero Ein feste Burg ist unser Gott (Deus É a Nossa Cidadela). Na sua obra Zur Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland (Para a História da Religião e da Filosofia na Alemanha), tomo II, H. Heine chama a este hino «a Marselhesa da Reforma». (retornar ao texto)

[N30] Copérnico recebeu o primeiro exemplar do seu livro De Revolutionibus Orbium Coelestium (Das Revoluções dos Círculos Celestes), no qual expunha o sistema heliocêntrico do mundo, a 24 de Maio (calendário juliano) de 1543, dia da sua morte. (retornar ao texto)

[N31] De acordo com as concepções reinantes na química do século XVIII, considerava-se que o processo de combustão era determinado pela existência de uma substância especial nos corpos, o flogisto, que se segregava deles durante a combustão. O eminente químico francês A. Lavoisier demonstrou a inconsistência desta teoria e deu a explicação correcta do processo de combustão como reacção de combinação de um corpo combustível com o oxigênio. (retornar ao texto)

[N32] Trata-se do livro de Kant Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels (História Universal da Natureza e Teoria do Céu), publicada anonimamente em 1755. Nesta obra era exposta a hipótese cosmogónica de Kant, segundo a qual o sistema solar se terá desenvolvido a partir de uma nebulosa originária. Laplace expôs pela primeira vez a sua hipótese sobre a formação do sistema solar no último capítulo da sua obra Exposition du système du monde (Exposição do Sistema do Mundo), tomos I e II, Paris, 1796. (retornar ao texto)

[N33] Trata-se da idéia expressa por I. Newton na obra Philosophiae naturalis principia mathematica (Princípios Matemáticos da Filosofia Natural), livro III, Considerações Gerais. Ao referir-se a esta expressão de Newton, Hegel, na sua (Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften (Enciclopédia das Ciências Filosóficas), § 98, Zusatz (Aditamento) 1, observa: «Newton... avisou expressamente a física para se guardar da metafísica...». (retornar ao texto)

[N34] Anfioxo: pequeno animal pisciforme; é uma forma de transição dos invertebrados para os vertebrados; vive em vários mares e oceanos. Lepidossirene: peixe dipneumóneo, isto é, com respiração pulmonar e branquial; vive na América do Sul. (retornar ao texto)

[N35] Ceratodo: peixe dipneumóneo da Austrália. Arqueoptérix: vertebrado fóssil, um dos mais antigos representantes da classe das aves; apresenta simultaneamente certas características dos répteis. (retornar ao texto)

[N36] Trata-se da dissertação de K. F. Wolff Theoria generationis (Teoria da Geração), publicada em 1759. (retornar ao texto)

[N37] Em 1859 foi publicado em Londres o livro de Charles Darwin On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life (Sobre a Origem das Espécies por meio da Selecção Natural, ou a Preservação das Raças Favorecidas na Luta pela Vida). (retornar ao texto)

[N38] Nome proposto por Haeckel para designar um vasto grupo de organismos inferiores (unicelulares e acelulares) que, a par dos dois reinos de organismos multicelulares (animais e vegetais), constitui um terceiro reino especial da natureza orgânica. (retornar ao texto)

[N39] Eozoon canadense: mineral encontrado no Canadá, que se pensou ser um fóssil de organismos primitivos. Em 1878, o zoólogo alemão K. Möbius mostrou que este mineral não era de origem orgânica. (retornar ao texto)

Inclusão 05/07/2011
Última altração 16/04/2014